Espiritualidade vs Humanidade
O que é a espiritualidade para mim? O que é a humanidade para mim? De que forma a espiritualidade coexiste com a minha humanidade?
Espiritualidade para mim é eu estar disposta a conhecer-me. É eu ter consciência de como quero agir sobre determinada situação e/ou em relação a uma pessoa de acordo com aquilo que sou e acredito ser e não uma vez mais pela forma como a sociedade dita as coisas, porque desta forma estaria a ser condicionada a uma visão da projeção social, sem trazer qualquer questionamento e vontade de pensar sobre o assunto. Por exemplo, se eu sinto raiva eu tenho a responsabilidade de a conduzir em mim perante as situações que ma fazem emergir e não pelo modo como a sociedade nos estabeleceu durante anos de que era errado sentir raiva.
Espiritualidade para mim é não negar os meus diferentes estados emocionais pelos quais transito ao longo do dia. Espiritualidade para mim não é uma posse, é como um reconhecer de uma diferente existência que faz parte de mim. Espiritualidade para mim não pode ser desvinculada da minha humanidade. Eu permito-me ser mais consciente e mais presente porque tenho a humanidade em mim que reconhece esta espiritualidade, que ao fim e ao cabo é uma forma de saber estar mais atenta e presente àquilo que sou, àquilo que penso, da forma como ajo, da forma como me permito distanciar das situações, pensamentos e pessoas que me trazem pesar.
Assisto cada vez mais a um mundo vazio de espiritualidade. A um vazio conduzido por palavras levianas que fazem parecer que só a espiritualidade é a forma correta de se estar, de existir, eliminando a ideia de que somos humanos. Este leviano do mundo espiritual estará ou não a despertar-nos para um conhecimento de nós enquanto seres humanos? Se eu me sei existente além deste corpo, foi a minha humanidade e o meu corpo enquanto matéria quem mo mostrou.
Ser espiritual não parte necessariamente de um lugar em que temos todos de obter poderes psíquicos e dons divinos. Ser humano já é um poder por si só! É divino poder aqui estar! O meu corpo, a minha voz, as minhas ações servem a esta vida e não o contrário. É ou não igualmente bom ser-se espiritual tanto quanto humano?
Ser espiritual para mim é ter uma observação e olhar contemplativo sobre as coisas. É ver-me enquanto observador da realidade fora da realidade e nela inserida. É empoderar o outro e reconhecer em mim, também, a elevação enquanto potencial humano que sou.
O desejo, o tesão, a vontade, a força, a fé, o sofrimento, o amor, as emoções, as relações estão onde? Estão em que plano? Vou negar a minha existência material ou vou fazer valer sentido em conjunto com o meu espiritual? Não estou a querer dizer com isto que é o material que me devo focar, na aquisição de coisas ou poderes, mas sim na matéria enquanto meio que permite direcionar a minha energia de acordo com o bem que em mim existe caminhando cada vez mais a um ser humano digno de receber a benção de aqui estar.
Espiritualidade para mim resulta de uma análise muito própria, cuidada, demorada e persistente de me querer conhecer.
No iniciar do estudo do yoga levei comigo por algum tempo esta ideia, que agora designo como errada, de que para ser professora tinha de ser terapeuta, tinha de ler auras, tarot e uma série de outros "plug-ins" porque era a ideia da qual o mundo "dito espiritual" me estava a passar na altura, e que infelizmente ainda é corrente. Como não tinha a capacidade de me colocar sobre um questionamento profundo, ficava pela leviandade e preguiça de pensar até que: senta e medita! E este senta e medita era uma observação do meu mundo interno, do mundo externo com o interno e do interno com o externo. Se eu não meditar todos os dias, se beber vinho, se me relacionar sexualmente somente por desejo "primitivo" e não por amor, se disser um palavrão, se sentir carência, se for vulnerável e expelir raiva devez enquando, não faz de mim uma pessoa menos espiritual. Faz de mim uma pessoa humana que tem por objetivo processar emoções. Faz de mim humana no sentido em que tenho escolha e de qual a consequência e utilidade emocional que aquela escolha me vai trazer.
Eu adoro a minha cadela, se eu não chorar a sua partida vai fazer de mim menos espiritual? Pois é isto! Cada vez há menos nexo nas coisas que são ditas no "mundo dito espiritual". Há um discurso social a ser falado sem sequer ser pensado. Eu não me quero encaixar nesta fala. Eu quero ter voz naquilo que falo. Uma voz verbalizada, uma voz escrita que possa transparecer tudo o que sou na medida que penso e sinto.
Durante muito tempo permiti-me estar neste estado neutro, o que na realidade levou-me a uma reflexão do "não sentir", quando que para mim ser-se espiritual é sentir tudo ao que eu venho, experencio: sentir a minha respiração, o som que ela transmite, a forma como acontece sem qualquer esforço, mas é meu corpo humano que trabalha para que tal aconteça e é ele o responsável por eu tomar tal observação.
Espiritualidade é ou não conectar-me à minha essência? O que é a essência senão a verdade daquilo que sou.
Humanidade para mim não é só corpo, é o sentir, o realizar, as emoções, o criar, o relacionar. É todo um conjunto complexo que me permite aprender. Humanidade para mim é parte responsável na construção da personalidade, na qual o espiritual também aqui está. É eu reconhecer quais são os meus valores e de que forma enquanto humano eu os exerço.
Em algum tempo eu via-me a fazer esta distinção do meu espiritual para com a minha humanidade catalogando algo como bom e mau, respetivamente. Percebi que não podia ser e que em parte não era uma separação que resultava de ambas as partes, mas uma união na qual um oposto tendo o espiritual como tranquilidade e paz interior, gerava um efeito de bem estar aquando da ansiedade, conflito e duelo mental. É ou não é necessário que ambos interagem sem se sobreporem um ao outro? É sim.
Espiritual para mim resulta do reconhecer uma parte de mim mais tranquila que pondera a análise ao invés de resposta, que pondera silêncio como forma de resposta. Não tenho que ter resposta para tudo, como não tenho que amar tudo em especial aos que menos bem me fizeram ou mal me querem, também não tenho de os odiar sequer. Tenho de estabelecer este filtro para que a minha humanidade se mantenha sã. Em complemento ao inicio do parágrafo, não é a tranquilidade que faz de mim espiritual, é eu reconhecer que tenho em mim este espaço para ser e me manifestar como tranquila.
Hoje em dia por exemplo ouvimos muito falar sobre estar na vibração correta como se as restantes fossem erradas. Não acho que sejam erradas só não são benéficas de lá permanecemos. Há quase como que uma imposição e um cansaço gerado pelo mundo espiritual de que temos de estar bem o tempo todo em especial para acudir ao outro, aquando que sou eu quem me desvalorizo e me coloco em posição de não defesa para com o que me envolve.
O assunto da guerra Palestina e Israel, hoje transportou-me para uma existência humana tremenda, só pensava no facto daquele povo estar sob um sufoco imenso de dor, sofrimento e medo. Curioso que pensei na vibração, mas numa vibração diferente. Uma vibração territorial, uma vibração que provinha da força de destruição, que ecoava no espaço e abanava o chão, uma abalamento de infra estruturas e de pessoas que nelas habitavam. É espiritual para mim desvincular-me da minha humanidade?
Se a ideia de ser espiritual for isto de passar ao lado de ver o que ocorre pelo mundo fora e não ter algo a dizer e refletir sobre, eu não quero ser espiritual. Se ser humano for todo este conflito e massacre, eu também não quero ser humana. 14 mil pessoas em 50 dias!!! Eu vivo na ilha do Pico, é relativamente a população que aqui habita, isto significaria para mim acordar sozinha no dia de amanhã. O que seria de mim sem uma série de seres humanos com os quais tenho a possibilidade de me relacionar em amizade, profissionalmente, amorosamente, familiarmente? Seria só eu e o meu espiritual. O que faria com tanto se o tanto que me faltaria seria a humanidade?
Não há distinção. Não há separação. Não há respostas certas ou erradas. Não há como ser um sem o outro e sem o reconhecimento de que o outro existe e tem espaço em mim para existir.